MEMÓRIA SÃO-CARLENSE: A magia do tempo dos bondes
1 DEZ 2017 • POR (*) Cirilo Braga • 03h01
O saudosismo dos são-carlenses mais antigos pelo bonde elétrico é revelador da intensidade com que esse meio de transporte se incorporou à paisagem urbana no século passado.
Não é exagero dizer que um dos dias mais tristes da história de São Carlos foi o dia 15 de junho de 1962, quando os bondes da Companhia Paulista de Eletricidade (CPE) deixaram de circular pelas ruas da cidade.
"Sem os vistosos bondinhos vermelhos, sempre limpos e bem conservados, a cidade perdeu muito de sua feição alegre, principalmente à noite, quando os seus potentes faróis cortavam as trevas, nas ruas mal iluminadas dos bairros distantes, transmitindo uma sensação de conforto e segurança", escreveu o jornalista e escritor Octavio Damiano.
O bonde parecia ser um membro da família de quem viveu em São Carlos naqueles tempos. Ou uma espécie de coreto de praça que se deslocava, descortinando uma cidade orgulhosa de si mesma. De sua brisa, de suas colinas, de suas meninas bonitas, de suas lendas. Algumas dessas lendas tinham relação direta com o bonde. Como a do fantasma que embarcava à noite no centro da cidade e desaparecia no final da linha, defronte o portão do cemitério.
Nos escritos de cronistas de antologia, como Damiano, João Genovez, Nelson Camargo Lima, Nicola Gonçalves, Eduardo Kebbe; nas lembranças da família Fiorentino, nos documentários como o da ONG Ramudá, nos depoimentos de tantos e nas memórias de antigos motorneiros, o bonde reluz como um totem. Um totem são-carlense.
ÚLTIMA PARADA
Os bondes circulavam por ruas de paralelepípedos, que depois de sua desativação foram recobertas de asfalto, não deixando rastro dos trilhos urbanos tão ligados ao cotidiano do povo. Não restou sequer um trecho de alguma linha para contar a história.
Um terreno da antiga CPE, perto do atual supermercado Cogeb, na chamada "Vila Mathias", foi a última parada das carcaças dos bondes. Alguns exemplares foram vendidos sem as partes metálicas e a relíquia do "Bonde da Saudade" homenageado por Dario Rodrigues e Totó Fiorentino (e devidamente restaurado por Nicola Gonçalves), empreendeu viagem da praça da Piscina para o Balão da Vila Nery em 2008 quando o local voltou a literalmente merecer esse nome.
Todas as histórias relacionadas aos bondes poderiam começar com o clássico "era uma vez..."
Assunto presente em todas as rodas de bate-papo em São Carlos já a partir de 1911, muitos não acreditavam que a cidade reunisse capacidade técnica e recursos financeiros necessários para colocar em funcionamento um invento que circulava na capital paulista havia apenas 11 anos (desde 7 de maio de 1900), através da empresa canadense Light Power Company, na primeira experiência do gênero na América do Sul.
Mas as grandes histórias são escritas com as tintas da ousadia e então a Companhia Paulista de Eletricidade, dona da usina hidrelétrica pioneira, que ampliou a iluminação pública na cidade, ganhou a concessão do serviço em 1912 e implantou o serviço de bonde em 1914.
Muita gente passou anos se recordando do que se passou naquele dia 27 de dezembro de 1914, quando as linhas foram ativadas e já no primeiro dia registrou-se um movimento de 14 mil passageiros. O valor arrecadado foi destinado às instituições de caridade. Imagine o clima de festa. Dias antes, em 9 de dezembro, a título de exibição e repleto de convidados, o primeiro bonde (um carro de carga) transitou triunfalmente pela linha da rua São Joaquim sob aplausos das pessoas que se aglomeravam em todo o seu percurso desde a Fábrica de Tecidos até a Estação de Bondes.
TRÊS LINHAS
Ao todo, o sistema dispunha de nove veículos - encomendados da fábrica belga Société Franco-Belge de Matériel de Chemins de Fer - , um deles configurado para transporte de carne do matadouro para os açougues da cidade. Nunca houve renovação da frota; os primeiros bondes elétricos foram também os últimos da cidade.
A praça Coronel Salles, antigo "Largo Municipal" era ponto de convergência das três linhas de transporte previstas pelo contato que estabeleceu prazo de 50 anos para a concessão. A linha 1 ligava o Cemitério Nossa Senhora do Carmo à Estação Ferroviária da Companhia Paulista de Estradas de Ferro . A linha 2 fazia a conexão entre a Santa Casa de Misericórdia e o Ginásio Diocesano e a linha 3 transportava os passageiros da Praça ARCESP na Vila Nery, até a Estação Ferroviária. As três linhas se aproximavam no centro da cidade, permitindo baldeações e encontravam-se na Estação Ferroviária, nos horários das chegadas e partidas dos trens da passageiros. Atendiam também os horários de entrada e saída dos funcionários nas fábricas.
José Alfeo Rohm, no blog "Lugar do Trem", lembra que o bonde da linha 1 em seu ponto final no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, "além de servir aos operários e viajantes com destino às fábricas e Estação Ferroviária, servia também para o acompanhamento de traslados funerais; o corpo do falecido ia no carro funeral, e atrás, no bonde, os seus parentes e amigos. Era possível fretar um bonde junto a CPE para esse serviço".
BONDES DA ALEGRIA E DA SAUDADE
Quando o assunto era a alegria, o bonde também estava lá. Todo enfeitado, o "Bonde da Alegria" acompanhava o corso nos carnavais daqueles tempos, animando a rapaziada. Para os moleques, a farra começava na diversão de colocar pedaços de sabão ou bananas maduras nos trilhos das subidas dos bondes, que ficavam patinando e não conseguiam vencer a ladeira.
Os pontos preferidos para essa presepada como registrou Rohm, eram as subidas das ruas São Joaquim, próximo da Piscina Municipal e a da rua Bento Carlos, após a rua Episcopal. "O motorneiro dava ré no bonde, depois voltava a pé junto com o cobrador e limpavam os trilhos. Quando iam de volta para colocar o bonde em movimento, os moleques rapidamente faziam tudo de novo...Para fazer cerol para as pipas, a meninada colocava os pedaços de vidro sobre os trilhos, e as rodas do bonde deixavam os mesmos em pó".
Da última viagem do bonde, no dia 15 de junho de 1962, guarda-se uma foto hitórica, tirada pelo industrial Renato Rösel.
No dia 10 de novembro de 1965, para preservar a memória daqueles anos dourados, São Carlos inaugurou o "Bonde da Saudade", então instalado na praça da Piscina Municipal. O escritor e marceneiro Nicola Gonçalves incentivou o industrial Dario Rodrigues e o jornalista Totó Fiorentino, rotarianos, a viabilizar a compra do veículo da Companhia Paulista de Eletricidade pelo Rotary Clube, que o doou à Prefeitura.
Em 2008, restaurado, o bonde foi removido para a Praça Arcesp,na Vila Nery. Revitalizado no final de 2010, o veículo recebeu novos pisos, bancos, iluminação e pintura e no local onde se encontra foi instalado o Memorial do Bonde que conta com informações e história sobre o sistema de transporte, cuja memória mereceu muitos registros em artigos de jornais, livros - como "Notícia Histórica sobre Bondes de São Carlos", de Otávio Damiano e documentários - como o vídeo "O Bonde dá Saudade", produzido pela ONG Ramudá e lançado em 2004. Há alguns anos a Prefeitura cogitou de revigorar o centro histórico da cidade, com a perspectiva de instalação de uma linha de bonde turística. A ideia não foi adiante.
Quando em operação, o serviço de bondes foi preponderante no espaço urbano e também nos hábitos, costumes e comportamentos da população. Após sua desativação, os caminhos do tempo vieram comprovar que a saudade que os são-carlenses passaram a sentir talvez não fosse apenas de um sistema de transportes, mas do clima pacato e do encanto de uma São Carlos que desapareceu.