Pesquisador de São Carlos cria pontes entre a matemática e a indústria
Resgatar e preservar as histórias de vida de pesquisadores é um dos objetivos deste texto, que faz parte da série “Perfis ICMC”
11 MAI 2023 • POR Denise Casatti • 06h54O Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp, em São José do Rio Preto, é o cenário em que começa a trajetória do professor José Alberto Cuminato pelas ciências matemáticas. Era 1973 quando o jovem ingressou no curso de Licenciatura em Matemática. Naquele tempo, o local ainda era um instituto isolado de ensino superior que se chamava Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFI). Um ano antes de Cuminato se formar, em 1976, com a implantação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho (UNESP), a FAFI passou a fazer parte dela e a ser chamada de IBILCE.
O curso era semestral e em tempo integral, com entrada de 60 alunos anuais, na sua maioria oriundos da região. No primeiro ano, as disciplinas de Cálculo I, Álgebra I e Geometria Analítica reprovavam a grande maioria dos calouros, pois o regime universitário era muito diferente do colégio. Dessa forma, as turmas dessas disciplinas tinham cerca de 150 a 200 alunos. Devido à grande quantidade de estudantes, era comum que se adotasse o nome da cidade de origem como apelido para os alunos. É daí que se origina meu apelido: Poti.
Cidade no interior do Estado de São Paulo, Potirendaba fica aproximadamente a 35 quilômetros de distância de São José do Rio Preto. O município tem cerca de 15 mil habitantes e deixou para sempre sua marca registrada no nome do jovem matemático. Até hoje, nos corredores do ICMC, onde Poti é professor desde 1980, escuta-se poucas vezes alguém chamá-lo pelo nome completo.
Perde-se um biólogo, ganha-se um matemático Foi em uma escola rural, localizada a poucos metros de onde a família de Poti morava, no bairro de Vila Nova, que o garoto cursou os quatro primeiros anos do ensino fundamental.
Por insistência da minha mãe, no final desses anos, prestei o exame de admissão para a Escola Estadual Maestro Antônio Amato (EEMAA) e passei a frequentar o que, naquele tempo, chamava-se de primeira série do ginásio, em Potirendaba. O bairro onde eu morava ficava a cerca de seis quilômetros de Potirendaba e o meio de transporte era o cavalo. Por seis anos, incluindo os quatro do ginásio e os dois anos do colegial, eu percorri esse trajeto a cavalo todos os dias do período escolar.
Mas eis que, quando estava no último ano do ensino médio, conhecido como terceiro colegial naquela época, Poti se cansou da vida pacata de Vila Nova e resolveu se mudar para São José do Rio Preto, onde arrumou um emprego de tapeceiro e passou a frequentar o Colégio Estadual do Parque Estoril no período noturno.
Até então, inspirado por um professor de biologia da antiga escola estadual de Potirendaba, o jovem sonhava em se tornar biólogo. Mas houve também uma professora de matemática no meio do caminho: no Colégio Estadual do Parque Estoril, Poti conheceu Aldenice Brito Pereira. Esposa do também professor Sebastião Pereira Martins, o casal fazia parte do corpo docente do IBILCE . Pesquisadora da área de matemática, Aldenice fez parte da primeira turma a se formar na Licenciatura em Matemática da instituição, em 1971, e estava cursando o seu mestrado em São Carlos.
Ela dizia: “Ah, vocês têm que fazer matemática, porque lá em São Carlos tem mestrado e pagam bolsa”! Naquela época, falava em pagar, a gente já acendia o olho na hora, porque dinheiro não existia. Ninguém tinha dinheiro para nada. Então, quando chegou no fim do ano, eu prestei o vestibular e você tinha que, na inscrição, escolher exatas ou biológicas. Com dor no coração, eu escolhi matemática. Mas o que eu queria fazer era biologia, mas imaginava que em biologia não tinha esse negócio de mestrado, de bolsa.
Para frequentar a graduação, o jovem estudante viajava todos os dias de Potirendaba para São José do Rio Preto de ônibus, passando por estradas de terra que ficavam praticamente intransitáveis quando chovia.
Os dois primeiros anos foram bastante difíceis, pois naquele tempo não havia restaurante universitário nem apoio aos estudantes carentes, como era o meu caso.
UMA VIDA, MUITAS ESCOLHAS
No momento em que concluiu a Licenciatura em Matemática em 1977, Poti decidiu se inscrever no mestrado em duas instituições: no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), em que havia a possibilidade de atuar na área de estatística, um campo mais aplicado e almejado pelo recém-formado; e no ICMC, onde a pós-graduação era mais voltada para a matemática pura.
Acontece que, ao ser chamado para a entrevista de seleção para o mestrado no ICMC, o jovem ainda estava cursando o Programa de Verão em Matemática no IMPA, no Rio de Janeiro, e não sabia se conseguiria notas boas o suficiente por lá para obter uma bolsa de mestrado.
Eu lembro que, no final da entrevista, o professor Luiz Antonio Fávaro disse: “Se você me garantir que opta por São Carlos, terá a bolsa. Só que eu não quero que você diga sim e depois desista.” Como eu não sabia se eu ia conseguir a bolsa lá no IMPA, eu respondi: “Pode confirmar”. Voltei ao IMPA, terminei o curso de verão, fiz a segunda prova e tirei “A”. De volta a São Carlos, depois de cerca de um mês, recebi uma carta do IMPA oferecendo a bolsa. Mas já tinha prometido ao Fávaro que ficaria. Só que, naquele momento, a minha preferência era pela estatística. Veja que, as circunstâncias me fizeram mudar de opinião duas vezes: de biologia para matemática e de estatística para matemática aplicada.
Ao explicar ao professor Fávaro que queria atuar na área de matemática aplicada, ele lhe atribuiu como orientadora a professora Célia Maria Finazzi de Andrade. No dia 13 de abril de 1981, Poti defendeu sua dissertação de mestrado no ICMC: Solução Numérica de Problemas de Valor Inicial por Métodos de Adams. Aprovada com louvor, a dissertação evidencia, no fim do texto de agradecimento, que a era da computação ainda não tinha chegado: “Enfim, a todas as pessoas que, direta ou indiretamente tiveram participação neste trabalho, em especial a Gisele Maria Saab que o datilografou”
No mesmo texto de agradecimento, outra revelação a respeito de um ingrediente fundamental que possibilitou a Poti prosseguir com seus estudos acadêmicos: “À FAPESP e CNPQ pelo apoio financeiro sem o qual não seria possível a realização deste trabalho. ”
A gratidão de Poti às agências de financiamento à pesquisa fica ainda mais evidente quando ele abre o armário de sua sala, no ICMC, pega um documento amarelado e mostra:
Olha: este é o primeiro relatório que fiz. Foi datilografado com carbono. Essa é uma cópia. Eu era bolsista de iniciação científica da Fapesp, processo número: 79759. Eu me formei em 1977, tive bolsa por dois anos foi o que me ajudou a terminar.
No documento, consta o nome do orientador: professor Antonio Espada Filho.
O Professor Espada, a quem sou muito grato, era muito gozador! Vivia sorrindo e tirando sarro da meninada, mas entendia como ninguém as dificuldades dos alunos. Essa bolsa de iniciação científica melhorou muito a minha vida. Veja: eu viajava de Potirendaba para Rio Preto, meu pai levantava cedinho, fazia almoço que eu levava na marmita. Com a bolsa de iniciação científica, o maior prazer era chegar para o dono da cantina, que se chamava Paulinho, e encomendar o almoço: “Hoje eu vou almoçar”.
UM TELEFONEMA DECISIVO
No final de 1979, mais precisamente em dezembro, Poti retornou a Potirendaba para as férias de fim de ano, momento em que surgiu uma vaga de emprego para professor na UFSCar. Era uma oportunidade única e os amigos do ICMC tentaram avisar o mestrando, mas como a família não tinha telefone, conseguiram apenas ligar para um bar da cidade e deixar um recado.
Só que o dono do bar, que disse me conhecer, nunca me falou nada. Ele deve ter pensado: “Isso aí é trote, você acha que alguém vai ligar aqui por causa de um emprego?”. E eu não me candidatei para essa vaga porque nunca fiquei sabendo. Quando cheguei ao ICMC em janeiro, o pessoal estava meio estranho comigo, pensaram: “Por que ele não quis o emprego da Federal?”. Naquela época, existia certa rivalidade entre a Federal e a USP, só que o salário de lá era muito melhor do que aqui. O então professor do ICMC Carlos Lazarini resolveu trocar de emprego e foi para lá. Daí, em janeiro, quando cheguei, ele já tinha saído, como o pessoal precisava de alguém para dar as aulas, eu fui contratado para a vaga dele no dia 26 de fevereiro de 1980.
Poti reconhece que, se o recado dado por meio daquele telefonema tivesse chegado a seu conhecimento, tudo seria diferente.
Não tenho dúvidas: eu seria professor da Federal até hoje, certamente
Outro singelo acontecimento capaz de alterar os rumos da vida se deu durante uma viagem que Poti fez em setembro de 1980 para participar do III Congresso Nacional de Matemática Aplicada e Computacional (CNMAC) em Maringá, no Paraná. No trajeto de ônibus, ele teve tempo de sobra para conversar com o professor Sean McKee, que estava visitando o Brasil. O bate-papo empolgou o professor recém-contratado, que começou a pensar na possibilidade de fazer um doutorado no exterior.
Eu me inscrevi para um monte de lugares, nos Estados Unidos e na Inglaterra. E, inclusive, para a Universidade de Oxford, porque o McKee era professor lá.
Mais uma vez, tal como aconteceu em diversos outros momentos na carreira de Poti, o acaso ou as circunstâncias fizeram a diferença e ele foi aceito em Oxford.
Embarquei para a Inglaterra em 6 de agosto de 1982, com pouca ideia do que ia encontrar lá e dos meandros da academia. No caso específico da Universidade de Oxford, além da sua reputação e excelência reconhecidas mundialmente que eu só vim a ter consciência depois, talvez tardiamente , seus cursos preparam as pessoas para terem independência acadêmica e são capazes de alargar os horizontes dos alunos. Ser um aluno de Oxford é algo que, em retrospectiva, eu nunca almejei, um privilégio para o qual o ICMC e o Ibilce me prepararam de maneira surpreendente. Tive dificuldades, principalmente com a língua e os costumes, mas não com a matemática. Para citar um exemplo: o curso de equações diferenciais ordinárias que fiz no ICMC durante o mestrado foi mais aprofundado do que o de Oxford, o que fez eu me sentir em casa.
Em Oxford, como requisito para ser admitido no doutorado, Poti iniciou um segundo mestrado em setembro de 1982. Naquele mesmo mês, ele se casou com a então estudante de enfermagem da UFSCar, Ivani Albers, e enfrentaram juntos a jornada desconhecida por Oxford.
Em junho de 1983, o brasileiro concluiu o mestrado com a apresentação da dissertação “A Class of Finite Difference Schemes for the Numerical Solution of Non-Linear Hyperholic Systems”. Em outubro de 1983, nasceu a primeira filha de Poti e Ivani: Mariana. Ainda em terras britânicas, dois anos depois, chegou Lucas.
A saga por Oxford termina com o doutorado, finalizado em 1987 com a tese “Numerical Solution of Singular Integral Equations and Applications”. Para completar a família, logo depois que regressam ao Brasil, vem ao mundo a caçula Clara, já em 1991.
Hoje, Mariana é engenheira de alimentos, tem dois filhos e mora em São Paulo; Lucas é cientista de computação, tem um filho e vive nos Estados Unidos; e Clara é economista, não tem filhos e também mora em São Paulo.
PARCERIA SEM FIM
Foi em Oxford que o professor brasileiro conheceu um novo universo de possibilidades dentro da matemática aplicada, ainda completamente inexplorado no Brasil, e que nascia da aproximação entre a matemática e a indústria. A experiência foi tão marcante que Poti voltou ao país com o sonho de construir projetos nessa interface, uma semente que gerou muitos frutos como o Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI), criado pelo professor em 2011.
Oxford era o berço da matemática industrial na época e foi a inspiração para os workshops com a indústria realizados até hoje em várias partes do mundo. Em 1983, o Oxford University Computing Laboratory (OUCL), parte do Faculdade de Matemática da Universidade, já dispunha de um departamento, o University Consortium for Industrial Numerical Analysis (UCINA), que promovia os workshops anuais e tinha, como único objetivo, a interação com a indústria. Ali, foi a primeira vez que ouvi falar de maneira sistemática, e com exemplos concretos, que a matemática poderia ser útil para a sociedade como geradora de riqueza.
Até hoje, Poti mantém uma sólida parceria científica com o professor britânico que conheceu dentro de um ônibus indo de São Carlos para Maringá e que o orientou no doutorado em Oxford: Sean McKee.
A exemplo do UCINA (hoje com outro nome) em Oxford, o CeMEAI e muitos outros centros similares pelo mundo vêm se estruturando e ganhando reputação como um dos poucos centros, na América Latina, dedicados em transformar em riqueza o magnífico acervo de conhecimentos das ciências matemáticas, contribuindo para diminuir a enorme desigualdade com que convivemos. Nesse esforço, a contribuição dos colegas e administradores dos departamentos e da diretoria do ICMC tem sido fundamental para o que foi conquistado até aqui. O meu sonho é tornar o CeMEAI um dos mais respeitados centros de interação entre a academia e a indústria do país, quiçá do mundo.
Mesmo que o sonho ainda não tenha se realizado por completo, a contribuição do professor para o desenvolvimento científico nacional e internacional já foi reconhecida pela Prefeitura de São Carlos em 2019, quando Poti recebeu o Prêmio Ciência-Tecnologia São Carlos na categoria pesquisador sênior. Ao receber a honraria, Poti disse:
O prêmio dá visibilidade aos cientistas que algumas vezes não têm suas atividades muito reconhecidas. Além disso, estimula os mais jovens a se interessarem pela ciência. Hoje, eles estão muito afastados desse propósito.
O fato é que a pesquisa científica é apenas uma das muitas frentes de atuação desse matemático que um dia quis ser biólogo. Ele também já exerceu diversos cargos administrativos no ICMC e, chegou, inclusive, ao cargo de diretor do Instituto no período de 2006 a 2010.
Membro correspondente estrangeiro da Royal Society Edinburgh desde 2012 e da Academia Brasileira de Ciências desde 2014, Poti foi, ainda, tesoureiro do International Council for Industrial Applied Mathematics (ICIAM) de 2010 a 2018 e presidente da Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional (SBMAC) por dois mandatos, de 2005 a 2007 e de 2007 a 2009.
Fui bolsista de iniciação científica da Fapesp durante a graduação no IBILCE, do CNPq quando fiz o mestrado no ICMC e da Capes no período do doutorado na Universidade de Oxford. Sem esses apoios, hoje não existiria o Poti Cuminato, que é como os gringos me chamam.