Há exatos 40 anos, quando era conhecida como a “Capital do Clima”, São Carlos vivia o momento dramático de se despedir da figueira quase centenária então existente na Praça Coronel Paulino Carlos, defronte à Catedral.
Logo no começo do ano de 1980, os moradores da pacata cidade, próxima dos 120 mil habitantes, receberam a notícia de que a árvore estava doente e necessitava ser sacrificada com urgência.
O diagnóstico soou como duro revés para várias gerações de são-carlenses e tomou conta das conversas, ali mesmo no entorno da árvore e nas rodas de amigos na baixada do Mercado. Todos se indagavam se haveria alguma alternativa para salvar a velha figueira. Que na época, por sinal, dizia-se que era centenária e alguns a citavam como exemplo de antiguidade (tal qual a Sé de Braga para os portugueses). Vira e mexe alguém dizia que um amigo, de tão velho era alguém que “foi testemunha do plantio da figueira”.
Fato é que nos dias que antecederam o corte, a velha árvore ficou no centro das preocupações dos cidadãos, das autoridades e da imprensa. Suplantava até a notícia de que por aqueles dias a cidade passaria a contar com novidades na telefonia, a implantação dos sistemas de discagem direta a distância e internacional. Como capítulos de uma novela, os acontecimentos sobre o destino da árvore eram acompanhado passo a passo por jornais e também por emissoras de rádio.
Na tarde do dia 25 de janeiro de 1980, o prefeito Antonio Massei reuniu a imprensa para uma entrevista coletiva no Palacete do Conde do Pinhal e anunciou a determinação dada ao Departamento de Serviços Urbanos para que cumprisse uma decisão judicial que mandou derrubar a velha figueira.
O processo tivera início com um laudo da APASC (Associação para Proteção Ambiental de São Carlos) sobre o estado da árvore, que se somava a um parecer técnico do Departamento de Silvicultura da Escola Superior de Agricultura Luis de Queiro da USP.
Houve a recomendação expressa de que a figueira deveria ser derrubada e substituída por outras árvores “antes que possa causar prejuízos”. Detalhe: conforme se decidiu, como numa derradeira homenagem, a árvore deveria ser fotografada antes de vir abaixo.
O assunto era tratado nos bastidores da administração desde 1976, quando ventos de maior intensidade derrubaram parte da velha árvore, felizmente sem provocar vítimas ou danos. Na época, galhos da figueira foram atados entre si por um cabo de aço que se rompeu em 1979, também numa ventania. Uma nova amarração foi feita, mas se percebeu que a árvore dava mostras de que o fim estava próximo – e o Corpo de Bombeiros lançou o alerta.
O chefe do Executivo lembrou que a figueira, plantada “em fins do século passado” era um dos símbolos de São Carlos. (Sem dúvida, ainda que não estivesse tombada, ela reunia elementos de um patrimônio histórico e se ligava à memória afetiva de boa parte da população, ali incluindo o próprio prefeito, são-carlense da gema, nascido em 1908).
“Hoje é um dia muito triste em que anunciou uma medida que a Prefeitura se vê obrigada a tomar contrariando não só a vontade do prefeito como de toda a população são-carlense; mas há uma necessidade urgente que esta providência seja tomada para evitar um mal maior”, anunciou Massei em tom solene aos jornalistas.
Explicou que a figueira não tinha mais condições de resistir, como ficara apurado em processo instaurado para um estudo profundo sobre o assunto, chegando-se à conclusão inevitável. Confidenciava que apesar desse veredito, vinha relutando na sua execução.
“Todavia, agora vejo-me na contingência de levar adiante essa inglória tarefa de cortar a nossa querida figueira”, disse. “Ainda hoje me foi dado presenciar um ato perigosíssimo, ou seja, várias pessoas paradas sob a figueira, correndo um risco iminente de um desastre de consequências fatais. Por tudo isso, devo atender ao que ficou estabelecido no processo feito através da APASC opinando pelo corte da figueira dentro do menor prazo de tempo possível”.
O prefeito prosseguia: “O meu sentimento é muito grande. Estou com72 anos e posso dizer a vocês que fiquei debaixo dessa figueira admirando a evolução das andorinhas. É, pois, muito constrangido que eu tomo essa atitude de mandar cortar a figueira. Para fins de recordação vamos fotografá-la antes da derrubada e plantar em seu lugar uma outra figueira”.
Não havia mais tempo a perder e no dia marcado, 29 de janeiro de 1980, uma terça-feira, logo ao amanhecer muita gente se aglomerou no local para assistir ao último ato. O trânsito de veículos na Avenida São Carlos foi interrompido e logo às 7 horas foi iniciado o trabalho de corte da figueira por uma guarnição do Corpo de Bombeiros sob o comando do Tenente Lorival Kroll. Havia a recomendação para que o serviço fosse realizado “dentro da maior cautela a fim de se evitar qualquer acidente grave”.
Alguns discutiam sobre qual seria a idade exata da árvore que desaparecia. Carlos de Camargo Salles, em crônica publicada em 1969, intitulada “A figueira do Jardim Público” informou que ela foi plantada pelo técnico em jardinagem Sepe Thomaz no dia 29 de julho de 1894 para marcar a data do nascimento de sua filha Thereza. Por aqueles dias, Salles mencionava haver uma dúvida entre motoristas da Praça Catedral quanto à idade da figueira, que cobria grande área da avenida e do jardim público.
Quando conversava com o amigo Blasco Bruno, do Chaveiro São Pedro, a eles se juntou Antonio Sepe, filho do antigo jardineiro, que confirmou a data, dizendo fazer referência ao nascimento de sua irmã.
A figueira era tema recorrente dos textos de cronistas locais. Octavio Carlos Damiano gostava de recordar que a velha figueira abrigava as andorinhas do jardim da Catedral, "que ao entardecer proporcionavam sempre espetáculos de rara beleza com suas evoluções pelo céu da cidade".
Pedro Fernandes Alonso num de seus artigos no jornal “A Tribuna” nos anos 70, contava uma lenda urbana famosa, que atravessou décadas, a lenda da “Assombração da figueira”. O que se falava, de acordo com ele, é que toda sexta feira o fantasma de um ex-escravo enforcado na figueira, aparecia subitamente no local – coisa de que ninguém duvidava por conta da história do linchamento ali ocorrido, de um rapaz negro acusado de estuprar uma moradora da rua Conde do Pinhal.
Um conhecido empreiteiro da época, ao passar certa noite pelo local acompanhado de um empregado, viu um corpo balançando no alto da figueira como um pêndulo. Ficou em pânico e desatou a correr. No dia seguinte a “visão” se esclareceu: o fantasma era na verdade o boneco de Judas que a molecada havia dependurado e explodido com uma série de bombas na véspera.
Um repórter de “A Tribuna” relatou em detalhes o trabalho dos bombeiros naquele 29 de janeiro: “Galho por galho, ao som das serras e com fortes estalidos, veio ao chão a centenária figueira defronte à Catedral. Até uma das pesadas máquinas da Prefeitura foi usada para forçar os galhos a cair. Lágrimas nos olhos, tristeza nos corações; as reações se multiplicariam em cada pessoa das centenas que pararam para ver o espetáculo da derrubada da velha figueira, transmitindo aos filhos e aos netos”.
O texto trazia o reparo de que aquela árvore crescera junto com a cidade e “durante todos esses anos havia conquistado o amor e a simpatia de todos os são-carlenses que a guardavam como uma relíquia, como um monumento representativo da tradição e progresso de São Carlos”.
Das coisas que ali são lembranças perdidas no tempo, certamente a velha figueira foi aquela cujo “passamento” a cidade viveu com maior pesar, porque a enxergava nitidamente como delimitadora de uma era que se encerrava naquele janeiro de 1980. Uma nova São Carlos haveria de despontar, projetada pelo clarão sobre a praça naquela manhã de sol.
(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).
Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.