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quinta, 26 de dezembro de 2024
Artigo Rui Sintra

25 de abril em Portugal - “O oitavo dia da semana”

25 Abr 2023 - 07h41Por (*) Rui Sintra
25 de abril em Portugal - “O oitavo dia da semana” - Crédito: Divulgação Crédito: Divulgação

Desci de quatro em quatro os desgastados degraus das Escadinhas de São Cristóvão. Faltavam apenas vinte minutos para o último “ferry” com destino a Cacilhas e não seria um namoro de adolescente que iria fazer com que eu dormisse ao relento no Cais do Sodré por causa do meu inadmissível atraso. Minha mãe esperava por mim do outro lado do Tejo - ela nunca dormia antes de eu chegar em casa - e por isso mesmo forcei o passo na noite escura de Lisboa. “Boa noite, senhor guarda!” - saudei rapidamente o policial noturno com quem me cruzei. - “Vamos ver se será uma boa noite...” - replicou ele. Achei a resposta meio estranha, mas continuei apressadamente o meu caminho assobiando baixinho a canção que tinha acabado de ouvir fazia dez minutos, lá na velha tasca na descida do Castelo - “E depois do adeus”. Até que gostava de ouvir Paulo de Carvalho, embora o achasse meio brega. Quase como que um milagre conseguii apanhar o “ferry” no último minuto - às 23h15. Entrei em casa por volta das 23h45, pedi desculpas para minha mãe por ter chegado tarde e rapidamente organizei meus livros e cadernos para as aulas do dia seguinte. Sem sono, repousei no sofá da sala, desliguei as luzes e liguei ao rádio com o volume bastante baixo. Repousei a cabeça para trás e adormeci vestido.

“Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas”. Acordei sobressaltado com aquela repentina voz na rádio.  Talvez fossem 04h20/04h30 da madrugada, não me lembro bem. “As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica esperando a sua ocorrência aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração que se deseja, sinceramente, desnecessária.”  Embora fosse ainda muito cedo, atrevi-me a ligar para a casa de um colega meu, tentando saber o que se passava. “Rui, tem algo acontecendo no Terreiro do Paço. Minha namorada ligou e disse para não ir para Lisboa, seja por que motivo for. Meus pais estão muito apreensivos” - respondeu ele sussurrando do outro lado da linha. “Vamos ver o que está acontecendo?” - desafiei. “Estou saindo de casa em cinco minutos, me espera na porta de casa” - respondeu ele. Apanhamos o primeiro cacilheiro - 05h30 da manhã, que seria o último a cruzar o Tejo no sentido de Lisboa naquele dia 25 de abril de 1974. Todas as minhas emoções naquele dia podem ser traduzidas no texto abaixo, da autoria de José Manuel Mendes - “O oitavo dia da semana””, CCUM. Braga (1988), em “25 de abril. Uma aventura para a Democracia” - “Textos Literários”.

“Eu estava lá. Posso-lhe dizer que não saberei como foi possível caber tanta gente numa só voz. Faço-me entender? Eram muitas as vozes, milhares e milhares, mas havia uma que vinha de todas elas e ficava a pairar. Uma revoada, uma música de mar. Cada um de nós a ouvia à sua maneira. Eu ouvia-a pensando no inverno de sessenta cinco, o meu tio preso, o meu tio tinha-se envolvido nas greves da margem sul, as nossas visitas a Caxias, o pavor e a revolta, imagine com que coração atravessávamos os portões! O vento a varejar as árvores quando saíamos. Ouvia-a também por entre as imagens da guerra nas fotos dos amigos, contaram-me estórias de arrepiar, iguais decerto a todas as estórias de guerra, mas havia uma diferença, na Guiné ou em Angola morriam tipos do meu bairro, tipos que jogavam matraquilhos nos cafés onde ia tomar a bica, um desses foi abatido a meio de um sorriso, o horror a preto e branco, corpos desfeitos no capim, navios carregados largando o cais. E o silêncio depois. O silêncio da angústia, o silêncio do luto.

Estava lá, mesmo junto dos blindados. A barba por fazer, cigarro atrás de cigarro, duas maçãs nos bolsos. Vim para a rua a esfregar os olhos, cheio de sono, e corri para o Carmo. Como a cidade inteira, afinal. Ou antes, como os que esqueceram o medo. Porque a derrota ainda poderia surgir, claro. A ansiedade crescia, tornava-se clamor, tantas palavras inventávamos, nem calcula as palavras que acolá nasciam para andarem de boca em boca, a tropa nervosa, um braço no gatilho, outro na festa, uma festa com subterrâneos de dúvida, note que não faltavam agoiros, preces, gestos temerosos. E lágrimas, lágrimas. Lembro-me sempre da velhinha, atrás de mim, murmurando. Jurem-me que é verdade, o rosário na mão, as contas caindo dos dedos até serem apenas cruz, murmurando e chorando. Jurem-me, um homem cortava presunto à navalha, oferecia aos militares, já o osso brandia no ar das palmas, dos punhos, das cantigas, alguém assomou a uma janela e pôs balões a subir, balões de feira, pombas de várias cores em viagem por cima dos telhados.

E, a dada altura, os tiros. Segundos de respiração suspensa, barulho de água a precipitar-se, a multidão em sobressalto. Os rostos fitando a entrada do Quartel. Que se passaria além daqueles muros onde estrebuchavam quarenta e oito anos de ditadura? Que se passa, nosso cabo? Alguma novidade, senhor jornalista? Nada, conjecturas, rumores. Nada. No fundo da alegria sentíamos charcos, essa coisa pegajosa chamada angústia.

O tal receio de um desaire. Pequeno e imenso receio, acredite. Entoámos o Hino Nacional. Gritámos Liberdade, Fascismo Nunca Mais, desejos assim. Desejos ou certezas, tudo se confundia. E Vitória, Vitória, quantos vês em movimento de onda sobre o dique entretanto derrubado? Chegou a notícia da rendição, chegavam cravos, vermelhos, brancos, cravos, cravos, na raiz do sangue e no cano das espingardas, pão, chouriço, cerveja, não te perguntarei o nome, soldado a quem estendo uma das maçãs camoesas, não te perguntarei por que caminhos irás, chegariam sustos e flores silvestres, transistores, ecos de um país amanhecendo, a História mudava de página, eu estava ali, percebe? Ali, uma criança trepara-me aos ombros para observar as varandas apinhadas, os carros de combate, o povo no Largo.

Creio que não, não chovia. De qualquer modo fazia sol, um sol de dentro, tão intenso como se o mundo começasse finalmente a conhecer a claridade. Sábado? Quarta-feira? Impossível recordar-me. Se calhar domingo, as pessoas desobrigadas do emprego, enchendo os passeios e as praças, Rossio, Chiado, Cais das Colunas. Os cacilheiros parados, as gaivotas do rio. E daí, deixe ver, os domingos são uma chatice, horas gastas de montra em montra, jardim em jardim, a remoer azedumes. Às vezes o cinema, sim. As praias na época do calor, o futebol. Domingo não, não podia ser. Teremos de imaginar um dia único, diferente dos sete dias da semana, um lugar para a dádiva e os abraços sem porquê, para o que jamais se repete, o insólito, o definitivo. Por exemplo, um oleiro no Terreiro do Paço. Um oleiro a tirar do barro crescentes de lua, flautas, placas à espera dos sinais por aprender. E, à volta, grupos a dançar. Dia único, garanto-lhe. A legenda de uma vida”.

*PS - Tal como escreveu um dia o Prof. José Machado “O 25 de Abril tornou-se para nós, os que o viveram e sentiram, uma nostalgia, sim, uma nostalgia, mas, ao mesmo tempo, um farol de ética, de virtude, de humanismo. Considero que, para nós,  portugueses, essa ética, essa virtude e esse humanismo ainda representam hoje, alguma coisa... Por sermos Portugueses!

O autor é jornalista profissional / correspondente para a Europa pela GNS Press Association  / EUCJ - European Chamber of Journalists / European News Agency) - MTB 66181/SP.

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

 

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