Hoje, 20 de novembro, a comunidade afrodescendente brasileira celebra o Dia da Consciência Negra, um dia de lutas com a memória de Zumbi dos Palmares, assassinado nesta data. O município de São Carlos, que nasceu no Século XIX, teve a mão de obra escrava como o grande “motor” de desenvolvimento. Foram os negros escravos que trabalharam nas lavouras de café. A riqueza vinda da terra roxa somada à força de trabalho importada da África, transformou a cidade, a região, a província e o país. Ao mesmo tempo, esta política racista deixou impressas as marcas da discriminação e da desigualdade social.
Em 1884, mesmo ano em que a ferrovia chegou a São Carlos, o número de escravos atingiu seu ápice. O município, neste ano, chegou a 3.774 escravos. Segundo o professor Álvaro Rizzoli, Caetité, no Estado da Bahia, foi o grande centro exportador de escravos para São Carlos do Pinhal, que era importante centro importador de mão de obra cativa.
O negócio era tão lucrativo que os maiores comerciantes de escravos do interior baiano acabaram se mudando para São Carlos, inclusive como fazendeiros, o que facilitava a transferência de escravos, pois de propriedade para propriedade do mesmo senhor era permitido o deslocamento dos cativos. No período entre 1874 e 1882, as transações cresceram 121%.
Apesar de São Carlos ter sido criada no período de decadência do tráfico negreiro, a dura verdade é que os cafeicultores da cidade exploraram a escravidão ainda por 30 anos. Pelo Censo Paroquial de 1874, a população negra do município, computando os escravos, pardos livres e pretos livres correspondiam a 39,3% do total de habitantes. A população do município era de 7.897 indivíduos, sendo destes 1.568 escravos, com 926 do sexo masculino e 642 do sexo feminino.
A contribuição da raça negra na construção de São Carlos é algo inquestionável e que está gravado na história do município desde a época áurea do café, no Século XIX, até hoje, com tradições, como a capoeira, a feijoada e o samba, entre outros, o que desafia o racismo que insiste em persistir.
De acordo com dados do “Inventário Analítico: A escravidão em São Carlos” do Prof. Álvaro Rizzoli, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), durante o período escravocrata, São Carlos atingiu o segundo lugar no tráfico de escravos para o interior paulista, perdendo somente para a região de Campinas.
A economia da povoação era totalmente agrária com alguma produção de cana e quase toda voltada para a subsistência. Nessa época o negro era a base da produção sendo o escravo quem trabalhava o campo e produzia o alimento e a renda.
O professor Oswaldo Truzzi afirma que os imigrantes italianos chegaram a São Carlos para substituir os escravos na plantação e coleta do café após a abolição. Segundo ele, este fato acabou ajudando ainda mais no racismo e na discriminação. “Como eram homens livres e assalariados, os italianos queriam mostrar que eram totalmente diferentes dos escravos. Assim, evitavam contatos com a população afrodescendente, o que ajudou na discriminação”, avalia o professor, autor de vários livros sobre a história de São Carlos.
BENS SEMOVENTES – O escravo não era considerado cidadão, e não possuía os direitos correspondentes. O Código Comercial da época incluía os escravos entre os bens semoventes; embora isto não os transformasse em objeto passível de comércio, eles eram transacionados. A prática era utilizar procurações para compra e venda; assim, comerciantes e fazendeiros se tornavam procuradores para as transações, escamoteando a comercialização de escravos. Havia também os chamados “negociantes”, que nada mais eram que comerciantes de escravos. O Estado recolhia impostos sobre as transações de escravos, e cobrava normalmente pela emissão de certidões que comprovavam sua posse, bem como de outros documentos relativos aos mesmos.
RIQUEZA E MISÉRIA, SEMPRE JUNTAS – Em 1870, a produção de café na Província de São Paulo correspondia a 16% da produção nacional; em 1885, São Paulo já produzia 40% do café brasileiro. Esse fato se refletia na valorização das terras produtivas e da mão-de-obra escrava. O escravo alcançava um alto preço e nos inventários registrados na cidade de São Carlos chegavam a ser 66% do patrimônio do senhor.
As condições de vida da população eram precárias naquele tempo. Dignas de nota foram as duas grandes epidemias de varíola que passaram pela cidade. Se a população livre não tinha boas condições sanitárias, ainda piores eram as condições de vida dos cativos. A idade média de um escravo era de 30 anos, sendo que com cerca de 10 anos de trabalho produtivo já estava esgotado. As maiores “causa-mortis” entre os escravos eram: traumatismos, doenças cardiovasculares e inanição.
PRIMEIRA VEREADORA NEGRA – Em 159 anos de funcionamento do Poder Legislativo, São Carlos elegeu, em 6 de outubro deste ano, Larissa Camargo (PC do B) como a primeira vereadora negra da história. “O dia 20 de novembro marca o assassinato de Zumbi dos Palmares. É diferente uma morte e um assassinato. Ele foi morto de forma muito cruel para mostrar para outros negros o preço de se rebelar contra o sistema de dominação que imperava na época. Então, o dia 20 de novembro marca a luta do povo negro pela educação e qualidade, moradia decente, pois tudo isso nos foi usurpado, quando fomos libertos em 1888 sem nenhum direito estabelecido. Então, no dia 20 de novembro, nós estamos em luta. Luta pela emancipação dos direitos do povo negro”, ressalta ela.
O presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Carlos, o advogado Renato Barros, também ressalta que hoje é um dia de reflexão e luta e comemora a eleição da primeira parlamentar negra eleita para a Câmara Municipal de São Carlos. “O dia 20 de novembro, infelizmente é uma data que precisamos ter para reflexão e para manifestações sócias para podermos lembrar toda a trajetória dos negros no Brasil e todo o trabalho para a evolução material para o Brasil. É uma data infelizmente necessária, pois marca um período muito doloroso. Zumbi resistia à escravização no Quilombo dos Palmares. A escravidão tem chagas no Brasil até hoje”, comenta.
Segundo Barros, o povo negro foi ignorado após a abolição da escravatura. “Isso revela a necessidade de termos o povo negro ocupando as instâncias de poder. Hoje é apenas uma minoria que ocupa espaços de poder. Isso ocorre também na iniciativa privada. A legislação impediu o negro muito tempo de estar nos bancos das escolas. O negro foi tratado durante muito tempo como um ser humano inferior. Esta população ainda sofre com estes problemas. Ter uma vereadora negra, como a Larissa Camargo, nos traz esperança de um Brasil melhor e de uma São Carlos melhor”, destaca ele.
Flor de Maio se tornou símbolo do negro são-carlense
O 13 de Maio é, sem dúvida, uma data importante para a história do Brasil, porém, a reflexão sobre a inclusão dos afrodescendentes se dá em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, como forma de enfatizar a necessidade de inclusão dos negros no processo social. Isso é significativo. Em nossa cidade, o longo caminho da luta pela inclusão teve no Grêmio Recreativo Familiar Flor de Maio um marco.
Fundado há 96 anos, o clube traduz a vitalidade dos afrodescendentes em São Carlos e sua rica contribuição para a história da cidade. A região onde o clube se localiza atualmente concentrou no final do século XIX, famílias de ex-escravos que, como a história registra, foram morar na “vertente sudoeste da colina central” além da Biquinha (hoje Teatro Municipal), chácaras do major Rodrigues Freire (Asilo dona Maria Jacinta) e do Major Manuel Antônio de Mattos (Vila Pureza).“Desde o final da segunda década do século passado, o Grêmio Recreativo Flor de Maio, cujos precursores trabalhavam como ferroviários, em todos os momentos soube valorizar a cultura negra e buscou a interação da comunidade com a sociedade e a conscientização acerca da igualdade social. Na época de sua fundação, intelectuais já falavam da necessidade de uma segunda emancipação que assegurasse a integração dos negros no processo produtivo”, conta o cronista Cirilo Braga, profundo pesquisador da história de São Carlos.
Segundo ele, desde a sua origem, o clube já se tornava uma referência positiva à população negra da cidade quanto à sua capacidade de organização. Havia, para além do espírito de congraçamento e de reunião, um sentido de resistência e um alto significado para a conscientização da comunidade negra em São Carlos.
Outro ponto que merece ser enaltecido na caminhada do Flor de Maio, foi a preocupação que seus pioneiros tinham com as atividades sócio educativas, buscando levar efetivamente à integração na sociedade. O Flor de Maio chegou a constituir uma escola primária e frequentemente promovia debates sobre temas sociais.
Em 1973, o clube realizou um ciclo de conferências colocando em pauta a transição de escravo a cidadão, a marginalização do negro no mercado de trabalho e a situação da mulher negra. Temas que permanecem atuais e que impulsionam o combate ao racismo, à discriminação e ao preconceito, sem perder de vista que o nascedouro dessa luta em São Carlos se deu no Flor de Maio.
Para além do samba, que imortalizou a rainha Odette dos Santos, nome do Centro Municipal de Cultura Afro-Brasileira, é preciso reconhecer o papel de afirmação cultural da etnia negra desempenhada pelo clube e sua importância nas conquistas da população negra são-carlense. Se ainda há muito ainda por ser conquistado, hoje são perceptíveis os avanços e a conquista de postos de liderança na sociedade se consolida.