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terça, 21 de janeiro de 2025
Jornada de perseverança

Pesquisadora do ICMC São Carlos coleciona conquistas internacionais

Superando adversidades e desafiando estigmas, Isadora Ferrão defendeu, em dezembro, tese sobre segurança em carros aéreos

21 Jan 2025 - 07h51Por Gabriele Maciel
Durante o doutorado, Isadora realizou diferentes palestras em escolas e universidades, divulgando ciência e a USP - Crédito: DivulgaçãoDurante o doutorado, Isadora realizou diferentes palestras em escolas e universidades, divulgando ciência e a USP - Crédito: Divulgação

A distância continental que separa a pequena cidade de Alegrete, no Pampa Gaúcho, de Brest, na França, só não é maior que a determinação de uma jovem que, aos 6 anos, já afirmava convicta à mãe: “Eu vou fazer faculdade!”. Contrariando o estigma imposto por sua condição social – que a colocava fora do quadro universitário do Brasil -, e superando inúmeras adversidades devido à falta de recursos financeiros, Isadora Ferrão conquistou, com apenas 27 anos, muito mais que seu sonho inicial.

Hoje ela é uma pesquisadora que acumula diversas conquistas. A mais recente delas foi a tese defendida em dezembro no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. “Há três anos, eu sequer sabia falar inglês, e hoje sou doutora por um dos institutos mais prestigiados do mundo. Essa trajetória não apenas me trouxe uma felicidade indescritível, mas também reafirmou que sou realmente capaz de superar qualquer desafio”, reflete Isadora.

Nascida e criada em Alegrete (RS), a filha caçula de dona Marilene Ferrão quase não teve tempo de saborear essa conquista. Isadora se prepara para embarcar, nos próximos dias, em uma nova jornada de aprendizados: um pós-doutorado na Universidade da Bretanha Ocidental, em Brest, onde deve permanecer pelos próximos dois anos. “Vou continuar trabalhando com segurança tecnológica. Quero aproveitar as oportunidades na Europa e, quem sabe no futuro, voltar ao Brasil para uma vaga de professora universitária”, planeja.

Conquistas

O título de doutora coroou um ano de outras duas importantes conquistas de Isadora. Um mês antes da defesa, ela representou o Brasil na Rússia, durante o BRICS Young Innovator Prize 2024. Selecionada por uma chamada conduzida pela Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), Isadora competiu na categoria Palladium in Future Technologies com dezenas de jovens talentos dos dez países do agrupamento BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã e Egito. “Foi uma oportunidade incrível! Passei cerca de uma semana e meia com alguns dos melhores jovens cientistas do mundo, de diferentes áreas. Isso abriu muitas portas para possíveis parcerias acadêmicas”, ressalta a pesquisadora.

Antes disso, em fevereiro de 2024, Isadora foi selecionada para participar do Condor Camp, uma imersão anual que foi realizada no México, reunindo jovens universitários de alto potencial. O evento proporciona um ambiente de discussão sobre os problemas mais urgentes do mundo e os desafios futuros da humanidade, além de promover o desenvolvimento de habilidades essenciais para enfrentá-los e solucioná-los. “Foram dias intensos de aprendizagem, fraternidade, troca de ideias, gentilezas e muita técnica. Foi intelectualmente cansativo e construtivo”, conta.

Esforço e talento

Muito antes de chegar à USP São Carlos, onde também fez o mestrado, Isadora já demonstrava talento para matemática. Nos exercícios incompletos dos cadernos dos irmãos, 4 e 7 anos mais velhos, ela se debruçava para encontrar, através da lógica,  aquela que seria a solução. Estudando em uma escola pública em um contexto de periferia, a pesquisadora destaca que teve excelentes professores, embora informações sobre bolsas, Olimpíadas e outras oportunidades raramente chegassem à comunidade, limitando o acesso a esses recursos.

Entretanto, quis o destino que, dois anos depois de dizer à mãe que faria faculdade e ouvir que a família não teria condições de pagar uma instituição particular, uma universidade pública começou a ser construída exatamente em frente à escola Lauro Dornelles, onde ela fez o ensino fundamental. “Havia um terreno em frente à escola e foi lá que construíram a Unipampa, onde eu acabei cursando Ciência da Computação”, relembra.

Grata pela oportunidade, Isadora quis abraçar todas as oportunidades e participou de projetos de ensino/pesquisa e extensão. Ela também acabou criando, junto com uma professora, um grupo chamado Gurias na Computação, para apoiar meninas no curso. “Eu pensava: “A população está pagando minha faculdade, então preciso aproveitar tudo e retribuir”, recorda.

Apesar de ter feito iniciação científica em várias áreas, ela acabou se encontrando na área de segurança em TI, trabalhando por dois anos com o professor Diego Kreutz. “Hoje, ele lidera um laboratório com vários alunos e acesso a muitas bolsas. Mas, na época, eu fui a primeira a incomodá-lo com tanta insistência. Foi nessa área que descobri minha paixão, e essa experiência me levou a decidir pelo mestrado”, afirma.

Foi nessa época que um encontro fortuito fez o ICMC despertar como objetivo concreto: no Congresso da Sociedade Brasileira da Computação (CSBC), onde Isadora foi apresentar um artigo, ela ficou sabendo que a professora Kalinka Catelo Branco, do Instituto, estava no evento. “Assim que soube, deixei a sala em que estava e corri para encontrar a dela. Assim que a vi, fui direta: ‘Oi, professora, tudo bem? Eu sou a Isadora. Posso fazer mestrado com você?’. Ela ficou um pouco surpresa, mas, com toda a educação e gentileza que lhe são características, respondeu: ‘Claro, me mande um e-mail’”.

E assim, um tempo depois, ela não só começou seu mestrado, como passou a contar com a orientação da professora, a quem Isadora tem como referência e a quem ela dedicou a tese: “Quando se nasce em condições humildes e distante das oportunidades, às vezes tudo o que precisamos é de uma chance, e Kalinka foi quem me concedeu todas elas. Serei eternamente grata pelas nossas trocas acadêmicas e pessoais”.

Salto de fé

Corajosa e certa do que queria, Isadora se mudou para São Carlos para cursar o mestrado com o dinheiro que havia economizado ao longo de anos, fruto de muitos trabalhos informais que ela tinha feito, como cuidadora de cama elástica em festa infantil, por exemplo. “Vim com o suficiente para cobrir dois ou três meses de aluguel. Minha motivação para estudar era enorme porque eu queria melhorar minha condição financeira e retribuir tudo que minha mãe fez por mim ao longo da vida”, destaca.

Apesar de logo conseguir uma bolsa de permanência, ela ainda teve que enfrentar o julgamento por não saber falar inglês. Essa condição, segundo ela, foi extremamente dolorosa, pois gerava uma sensação de inferioridade. “Pagar R$100 em um curso de inglês pode não parecer muito, mas para uma família de origem humilde, esse valor é significativo. É preciso explicar essa realidade, e ainda assim, muitas vezes escutar frases como: ‘Mas inglês é básico, você tem que saber’”.

Em um momento que poderia tê-la feito desistir, Isadora encontrou seu trampolim. “Contei à professora Kalinka que queria ter uma experiência em alguma universidade fora do Brasil, e ela me deixou escolher um projeto. Optei pela Universidade da Bretanha Ocidental. O problema é que, dois dias depois, ela me disse: ‘Temos uma reunião, e quero que você se apresente para o pessoal do mestrado na França’. Entrei em pânico. Ela sabia que meu inglês era ruim, mas acho que não tinha ideia de quão terrível era”.

Desesperada, Isadora passou a noite no Google Tradutor, tentando decorar palavras, o que acabou não sendo efetivo. “Eles falaram algo como: ‘Nice to meet you’, e eu não entendia nada”. Apesar das dificuldades, aquele momento se tornou um divisor de águas. “Saí determinada a aprender inglês”, relembra.

Com a pandemia e o mestrado sendo realizado online, Isadora teve condições de se dedicar ao inglês. Graças a bolsa do mestrado, conseguiu investir em aulas com um professor que, segundo ela, foi excepcional. Seu foco era tanto que seu tempo de lazer também incluía desenvolver habilidades com a língua. “Eu ouvia músicas e filmes somente em inglês e, apesar de não entender nada, aquilo me ajudava a me acostumar com o som das palavras”, se orgulha.

Aos poucos, ela começou a publicar artigos e apresentar em inglês, o que acabou chamando a atenção dos pesquisadores da França, que a convidaram para ir para lá e ficar por três meses, com financiamento deles. “Foi uma jornada intensa. Fiquei três meses na França, depois fui para a Universidade Técnica Tcheca, na República Tcheca, onde fiquei mais três meses. De lá fui para a University of Hull, na Inglaterra, onde permaneci mais um”, conta.

Sobre o aprendizado de inglês, ela afirma que a professora Kalinka teve um papel essencial: “Ela transformou todas as minhas dificuldades em oportunidades, impondo desafios que me ajudaram a crescer. Mesmo com um nível muito básico, ela confiou que eu aprenderia. E foi assim, com muito esforço, que consegui superar essa barreira”.

Jetson

De acordo com a pesquisadora, o cenário em que carros voadores cruzam os céus já não é mais mera ficção, como retratado no desenho animado dos Jetsons na década de 1960. Trata-se de uma realidade em desenvolvimento, com protótipos já em operação em Dubai e a promessa da Embraer de entregar os primeiros modelos no Brasil ainda em 2025. “Os carros voadores surgem como uma solução para aliviar o trânsito, que está cada vez mais caótico nas grandes cidades. Contudo, qualquer tecnologia, seja um carro convencional, autônomo ou avião, enfrenta um problema crucial: segurança. Toda inovação tecnológica é vulnerável, e é aí que entra nosso trabalho”, explica.

Com essa premissa, Isadora apresentou em sua tese, intitulada como Arquitetura resiliente de táxis aéreos para cidades inteligentes, uma solução para garantir a segurança de carros voadores. A pesquisadora desenvolveu três sistemas, além de uma interface:

Plataforma de Diagnóstico Jetson: trata-se de plataforma de diagnóstico de falhas críticas e computacionais em tempo real. Ele é treinado com grandes quantidades de dados e consegue identificar sete tipos de falhas físicas e dois tipos de ataques ao GPS com alta precisão.

Plataforma de Decisão Jetson: esse sistema é responsável por tomar decisões inteligentes em tempo real, sem intervenção humana, crucial para situações em que o tempo de resposta necessário é de apenas três segundos – algo praticamente impossível para um piloto.

Plataforma de Resiliência e Interface Jetson: este módulo se concentra em restaurar a aeronave após um problema, garantindo que ela continue operando de forma segura.

Complementando esses sistemas, a interface comunica em tempo real ao piloto ou passageiro quais ações estão sendo tomadas, aumentando a transparência e a confiança na aeronave. “Nosso objetivo foi aumentar a segurança para que as pessoas confiem na aeronave e garantir a transparência das ações realizadas. Isso é essencial para criar uma relação de confiança entre o público e a tecnologia emergentes”, destaca a pesquisadora.

Para a orientadora Kalinka, o comprometimento de Isadora foi fundamental para o sucesso da tese. “A persistência, resiliência e dedicação dela foram determinantes. Ela sabe o que quer e adora o que faz, e quando gostamos do que fazemos, os resultados aparecem”, destaca Kalinka.

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